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memorias do Alto 171a180







ALTO DO RODRIGUES
povoados, parando aqui, acolá, para umas lapadas com
os amigos, que ninguém é de ferro.
O trote chamado esquipe ou esqui par era uma espé-
cie de marcha cadenciada, não muito veloz, assim como
intermediária entre o galope e a carreira. Era mais que o
trote
. Era, realmente, uma marcha especial, diferente do
trote
, do chouto, do galope e da carreira desembestada.
Tinha uma cadência sem maiores solavancos, sem
os balanços das outras marchas, que suportava a pos-
tura do cavaleiro conduzindo na mão um copo cheio de
cerveja ou mesmo de água sem derramar
.
Havia os mais apaixonados por esse tipo de esporte
e de exibição
. Eram os criadores, os fazendeiros, os rapa-
zes mais garbosos, mais elegantes, mais charmosos que,
montavam os seus cavalos e faziam suas idas e vindas
pelas ruas ou por onde morassem algumas pretendidas
que se debruçavam às janelas esperando a banda passar.
Geralmente eram pares de esquipado
res, cada qual mais
interessado em demonstrar as suas e as habilidades de
seu cavalo. Na Várzea do
Açu, de um e do outro lado
do rio, conheciam-se, na Tabatinga, José Bolacha, José
Jorge das Neves, conhecido por Jovem, João Martins,
Gregório Mucuripe, Expedito F erre ira, e outros mais
que engrossavam as fileiras.
Do outro lado do rio, no Saco e Xambá, foram
conhecidos:
João Rodrigues Ferreira de Melo, falecido em
1926, um dos mais abastados fazendeiros das redonde-
zas e de sua época, conhecido por Joca de Melo que, aos
domingos, desfilava nas estradas poeirentas do Saco até
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o Xambá, exibindo as suas habilidades, sempre com um
companheiro, tomando umas e outras, contra a vontade
de sua esposa, D. Balbina, que não aprovava esse com-
portamento e loca de MeIo, sem dar trelas às implica-
ções da esposa que, mesmo desapro
vando, permanecia
no alpendre da casa grande, para receber os galanteios
do marido exibicionista. Todas as vezes que passava em
frente à residência, loca de Melo "riscava'v? o cavalo,
tomava o copo de cerveja que conduzia sem derramar
desde a fonte, a bodega onde captava a "água benta",
tirava o chapéu e cumprimentava:
- Boa tarde, Dona. Balbiiiiiina!
A mulher que gostava, mas fazia que não, respon-
dia com idêntica cerimônia e no mesmo tom:
- Boa tarde, seu sem-vergooooooonha!
loca de Melo ria gostosamente e voltava ao outro
ponto terminal, onde o esperavam os amigos. Tomava
umas e outras e repetia a jornada. Assim passava as
horas, desenfastiando o ócio e o mormaço das tardes
quentes porém gostosas do nosso verão.
Ainda no Saco se registrou a existência de exímios
esquipadores, como Chico de Barros
, aquele que levou
um tiro no peito, depois de passar esquipando em seu
cavalo diversas vezes em frente à casa de Antônio de
Gila, conhecido por
Seu Tonho de Gila, como a desfei-
(') "Riscar o cavalo" significava obrigá-I o a uma parada brusca que, de tão vio-
lenta, riscava o solo com os cascos que deslizavam, provocando uma nuvem
de poeira no local
.. Assim, Joca de Meio riscava o seu alazão para, com toda
a civilidade, cumprimentar D. Balbina
, sua esposa, num gesto especialís-
simo de cortesia, fazendo a corte, como se dizia na linguagem colonial.
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tear a sua família depois do entrevero em que deu umas
ligeiradas na irmã de Seu Tonho. Não tinha medo e gos-
tava de comemorar suas ações, desfilando, em seu cavalo
esquipador, para afrontar a família desmoralizada. Foi
numa dessas tardes domingueiras, esquipando em seu
cavalo, em companhia de Zé Correia, cada um no seu, é
claro, que, ao passar algumas vezes na frente da casa de
seus desafetos, levou um tiro de rifle nos peitos, dispa-
rado por Seu Tonho que não perdoara as ligeiradas que
Chico de Barros aplicara em sua irmã (de Seu Tonho).
Assim também, numa de suas escaramuças ante-
riores, Chico de Barros que ameaçara acabar com a feira
comercial inaugurada no vilarejo de Pendências, chegou
esquipando em seu cavalo para afrontar Luiz Gonzaga,
o chefe político de então, e foi recebido com um tiro na
coxa que frustrou a sua intenção de acabar a feira, fatos
já enunciados por nós em outros trabalhos, igualmente
temáticos como este.
Dos mais adestrados esquipadores conhecidos na
região, ainda estão aí Expedito Ferreira das Neves e Val-
decir Medeiros de Moura, firmes e fortes, apesar da pro-
ximidade dos noventa janeiros, prontos para esquipar e
fazer riscar os mais afoitos cavalos que porventura lhes
apareçam.
Há um detalhe interessante a ser analis-ado. O
professor, o mestre, o especialista em ensinar tem que
saber e saber bem a teoria e a prática do que ensinam.
Em todas as atividades conhecidas como objetivos de
ensino, apenas os mestres de cavalos esquipadores não
sabiam esquipar
. Não é interessante?
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Não deixavam, os cavalos esquipadores, de pro-
duzirem uma certa euforia em quem os montava,
tornando-os petulantes
, até arrogantes, posto que era
uma destreza não atribuída a muitos, e eram poucos
os animais que se adaptavam a essa técnica. Conhe-
ceram-se alguns cavaleiros esquipadores que desfila-
vam, em todo o percurso, com um copo d'água ou de
cerveja na mão, sem derramar
° líquido, dada a sere-
nidade do passo do animal
. Não eram também muitos
os mestres que tinham a maestr
ia de Chico Caetano,
exímio treinador e especializado em adestrar potros
esqui padores.
o SUICÍDIO FRUSTRADO DE
JOSÉ DOS SANTOS
José dos Santos não era tão bom administrador.
Gostava mais de explorar o que lhe oferecia a vida, em
termos de lazer que de adm
inistrar. E não perdia opor-
tunidade de arrastar uma asa atrás de um rabo-de-saia.
Tanto assim que as primeiras investi das empreendedo
-
ras não progrediram e Zé dos Santos se viu, certa vez,
quebrado, tendo apenas as cem braças de terra trazidas
por D. Salvina para o próprio sustento e da família que
já tendia a se ampliar.
Não tendo saída para a situação, decidiu suici-
dar-se. Embora extrema, não tinha outra opção. Pen-
sando assim, selou o cavalo e saiu a visitar os paren-
tes e os amigos, sem deixar a ninguém entender que se
tratava de uma despedida. Como não era tão distante
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o lugarejo chamado Poço da Lavagem, onde pretendia
desfechar o evento, hoje progressista município de Car-
naubais, próximo às terras de sue pai, Santos Bangu, Zé
dos Santos, que, por obrigação, teria que passar pelo
portão de seu padrinho, o patriarca conhecido por
Seu
Cabral, vez que a travessia do rio a vau somente ali era
viável, resolveu despedir-se do padrinho, ali na Taba-
tinga. Passou lá, disse adeus e pediu a bênção do padri-
nho que lhe disse:
- Deus o abençoe e o livre dos maus pensamentos.
Zé dos Santos partiu a galope, porém se manteve
preocupado com a bênção do padrinho. "Deus o livre
dos maus pensamentos". Daí em diante, o pensamento
fixo do suicídio passou a ser uma possibilidade. Era real-
mente um mau pensamento. Quando chegou a Poço da
Lavagem, a idéiajá se esvaíra e não era mais decisão. E
se questionava: Por quê?
Questionando-se, expulsou o mau pensamento,
vendeu o cavalo e de Poço da Lavagem se mandou e,
quando caiu em si, estava em Belém, isso mesmo, lá
no Pará. Onde ficou até que o seu cunhado, chamado
Liberalino, o fez resgatar, trazendo-o de volta dessa vez
para Areia Branca, onde morava. Aí Zé dos Santos, por
influência do cunhado Liberalino que hoje é nome de
rua na cidade, conseguiu emprego numa empresa sali-
neira, onde passou a residir e onde nasceram seus pri-
meiros filhos. Sob perspectivas mais promissoras, Zé
dos Santos quando voltou a residir em Alto do Rodri-
gues já divisava outros horizontes.
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A CUMEEIRA DE BENEDITO
Benedito Pereira, um dos amigos de Abelardo e
da fartura de sua mesa, já nosso conhecido, geralmente
se apresentava às horas do almoço e, convidado espe-
cial, participava das refeições. Após a morte de Abe-
lardo, num desses almoços que não se interromperam,
Benedito, que, com as funções de verdureiro, vendedor
de bicho, poeta, violeiro, repentista e comedor na casa
dos outros, acumulava as de profeta, sentado
à mesa
com D. Iracilde, a venerável viúva de Abelardo, disse,
solenemente:
- A cumeeira caiu.
Queria dizer que caído o esteio da residência, o
restante cairia também. Para infelicidade de sua premo-
nição, a cumeeira pode haver caído, porém não levou
na queda o empório administrativo criado por Abelardo.
Seus filhos mantiveram, com o mesmo vigor, a sólida
estrutura econômica deixada pelo empreendedor e aí
estão.
,
JULIO, O MUDO
Chamava-se Júlio, situado mais para a Tabatinga,
o surdo-mudo, que era visto todos os dias na estrada,
até Pendências, sempre munido de tinta e de pincel
com que produzia a sua arte. Desenhava, nos muros ou
nas paredes das residências e dos bares, onde encon-
trasse espaço liberado, figuras geralmente de animais
domésticos, de pessoas e de situações, dependendo do
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pedido dos interessados. Viam-se os seus desenhos,
caprichosamente bem acabados, que os fazia onde quer
que lhe solicitassem e indicassem os interessados, rece-
bendo, em compensação, alguns trocados com que se
alimentava e mantinha o vício de umas lapadas que não
dispensava
.
Sabe-se que era da Tabatinga, onde morava com
familiares, porém andarilho, na Várzea do
Açu, onde
deixaram permanecer, durante muito tempo, as ima-
gens de pessoas e de animais, com invejável perfeição,
geralmente em tinta de cor azul, sem se preocupar em
assiná-Ias, mas que não deixavam de ser identificadas,
dadas as características peculiares de sua arte
. Essa arte
durou muito tempo, em alguns casos, até que as enchen-
tes do rio derrubaram as paredes ou fossem substituídas
as antigas construções.
Procurando outros horizontes e locais mais desen-
volvidos para sua arte, faleceu atropelado em Natal o
nosso artista, onde por megalomania, inventava de aler-
tar os motoristas, sinalizando, com as mãos, as alternati-
vas dos sinais de trânsito, até que numa dessas ações, foi
atropelado e morto, sem outro qualquer registro de sua
passagem pelos caminhos da Várzea do
Açu,
                                                                        




ABERLADO VIVEU ENQUANTO PODE
MANDAR NO QUE ERA SEU.
Alto do Rodrigues não tinha postos de combustí-
veis' e Abelardo mantinha gasolina em tambores para
abastecimento de seus caminhões, quando
, nas emer-
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gências que não esperavam ir a outras localidades para
abastecer. Vivia-se uma época de chumbo, em plena
ditadura militar que durou da década de 60 à de 80,
quando a autoridade dos militares se fazia mais rigorosa
contra o povo. Os militares inventaram a existência de
um terrorismo na região, prendendo e levando para os
quartéis, naqueles transportes de soldados, todos quan-
tos achassem feios, invadindo as ruas e as residências
de supostos terroristas, para justificar a arbitrariedade.
Procurado por um daqueles grosseiros sargentões para
fornecimento da gasolina, que Abelardo mantinha para
suas necessidades, diante da postura do militar, res-
pondeu ao militar que tinha realmente uma reserva de
combustível para abastecimento de seus cinco veícu-
los e que, numa emergência como a que enfrentavam
no momento
- a enchente de 1974 - não tinha como
abastecer nos postos mais próximos, devido
à inter-
rupção das estradas
. Insistindo, o militar ameaçou de
usar a força para utilizar o combustível, a que Abelardo
retrucou:
- Sargento, eu quero viver até o dia em que
puder mandar no que
é
meu.
Disse e caiu morto, atacado de um infarto
fulminante
.
Não seria invencionice incluirmos esse fato como
mais um ato de arbitrariedade ditatorial, e Abelardo mais
um mártir do despotismo de então.
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OS BURROS ENGRAVATADOS
DE JOÃO TERESA
Alto do Rodrigues ainda não se emancipara polí-
ticamente, e todas as suas ações eram jurisdicionadas a
Pendências, cuja Câmara Municipal abrigava três verea-
dores do então distrito de Alto do Rodrigues. Eram João
Teresa, Chico Eliseu e Ornar Rodrigues. Num desses
dias, estava João Teresa à porta da Câmara, quando
passou um cidadão, portando um chicote ao ombro, e
perguntou:
- O senhor viu passar uns burros encangalhados
por aqui?
Ao que solenemente respondeu o nobre vereador:
- Encangalhados, não, mas engravatados aqui
cheiml
O DNA DE ABSALÃO
Certa vez, discutia o folclórico Absalão com um seu
amigo comum, conterrâneo e aliado político do Estreito,
a quem se atribuíam dúvidas sobre uma remota e jamais
comprovada vinculação paterno/filial, que o teste de
DNA, se existisse, teria esclarecido. Diante dessa impos-
sibilidade, a dúvida persistiu
, inclusive dando a Absalão
a não muito longínqua culpabilidade desse dever. E o
conterrâneo implicava:
- É, Absalão, eu posso não ser seufilho, como dizem
por aí, mas tenho características que vejo somente em
você. Até a minha sorte
é parecida com a sua. Quer ver?
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~
GILBERTO FREIRE DE MELO
o meu mandato de vereador foi prorrogado por mais
dois anos. É muita sorte mesmo, não é? Será que sou
seufilho?
Respondendo, em cima da bucha, disse Absalão:
- Não sei bem. Não posso afirmar que eu seja seu
pai, mas comi muito a senhora sua mãe!
o DISCURSO DE cmco PÉ-DE-PATO
Comemorando a vitória de Chico Eliseu numa
campanha política memorável, os seus amigos se reu-
niram em seu estabelecimento comercial, um tipo múl-
tiplo de bar e de restaurante que mantinha em Alto do
Rodrigues, e que acumulava com o ambulatório num
cômodo anexo, cujas atividades não se misturavam. E
haja comida. Bebida, corria frouxo .
. E haja discursos. O
candidato vitorioso mantinha ainda, no mesmo prédio,
um serviço de alto-falantes, com palco para as apresen-
tações num plano mais elevado, onde instalava o micro-
fone e dava condições de serem vistos e aplaudidos os
diversos oradores.
Nessa festa da vitória de Chico Eliseu, um dos
oradores era Chico-pé-de-pato, um caminhoneiro lá
das Pendências, que fazia parte da boca-livre daquele
dia.
Pé-de-pato tomou o microfone e, já a meio lastro,
falou, falou e dizia:
- Tenho certeza que a vitória de ... , a vitória de ... ,
a vitória de ...
(Não se lembrava do nome do candidato
nem havia alguém que o ajudasse e a fita enganchada!).
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